sábado, 16 de maio de 2009

Amo-te.

Amo-te.
Sempre estiveste além do teu tempo, além do espaço onde nasceste e viveste. Hoje os dias passam por ti, consomem-te a pele, a carne e os ossos e fazem-te envelhecer. Amo-te... Não sabes cantar, de trás para a frente, o nascer e desaguar dos rios, não conheces as dinastias, não recitas poesias, não sabes a tabuada e, na verdade, mal sabes ler e escrever.... Mas sabes... Sabes as coisas mais importantes e valiosas que nenhuma escola ensinou até hoje. És feita de trabalho árduo, de dias passados ao sol e à chuva, cheiras a terra molhada e a maresia. Amo-te... Sempre te ouvi atentamente, sempre deixei que as tuas palavras me percorressem a mente e o coração, mesmo que depois acabassem por cair no vazio. Sempre foste paciente, com a tua voz doce e meiga, como um leve bafejar no pescoço. Nunca te vi alterada ou fora de ti. Acho que, por tudo o que viveste até hoje, tens a força de um cavalo indomável. Tens essa mesma força, porém invísivel, que fica resguardada no teu corpo outrora ágil e que agora se tornou trôpego e rendido ao tempo. Já não andas a meu lado, não mais me acompanhas em longas caminhadas estrada fora, mas acompanhas-me na vida. Acompanharás, sempre. Amo-te... Nunca tentaste desviar-me do meu caminho, nunca quiseste interferir nas minhas escolhas, porque sabes e conheces a liberdade. Conheces a teimosia que nasceu comigo, sabes que ouvi e continuo a ouvir-te em mim, que valorizo tudo o que a vida te ensinou e me transmites. Mas sabes, também, que a última palavra sempre foi a minha. Que mesmo tendo consciência de que ia errar... preferia fazê-lo a ficar na dúvida. É por isto tudo, e além de tudo isto que te amo. Nunca me prendeste, nunca me julgaste, sempre conseguiste criticar-me de uma forma tão carinhosa que sempre consegui aceitar qualquer crítica construtiva vinda de ti.
Se soubesses o quanto te amo... Amo os teus olhos meigos, o olhar de quem já viveu tanto e mesmo assim permanece impávida e serena a qualquer dissabor. Amo a tua voz, hoje trémula, mas que ainda preserva a mesma suavidade de antes...
Ainda me lembro da primeira vez que chorei no teu colo. Era uma tarde de Verão como outra qualquer. Hoje já não a lembro como uma tarde comum. Recordo-a com extrema nitidez. Tinhas me comprado um balão daqueles que se vendem nas feiras. Dos balões, uns de uma forma outros de outra, de todos eles, escolhi um coelho amarelo. Vinha felicíssima com o balão a caminho de casa, não fosse eu uma crianca igual a tantas outras, alegre e despreocupada, alheia a qualquer tristeza. Numa das mãos, o balão preso a um fino fio de nylon que enrolei entre os dedos, na outra mão, a tua. "Não soltes o fio porque, se o soltares, o balão foge.", dizias tu. Mas isso nem me passava pela cabeca.... O balão tinha sido comprado por ti, para mim, era meu, e como era meu, não poderia fugir-me.
Mas quando cheguei à porta da tua casa o impensável aconteceu...
Eu olhava o balão suspenso pelo fio de nylon, mas queria senti-lo nas mãos, conhecer a sua textura, saber de que era feito. Por isso, puxei o fio suavemente, e com a outra mão encostei-o contra o peito, desprendendo-o fio que trazia enrolado nos dedos. Finalmente segurei o balão com as duas mãos, pequenas e com poucos reflexos, para poder vê lo melhor. Precisava descobrir o que seria afinal aquela enorme bola com duas orelhas, que me intrigava, pois não caía e aparentemente não tinha peso algum. E então, sem saber como, o balão fugiu-me... Foram apenas uns segundos. Uns breves segundos...
Não tive qualquer reacção. Quando olhei para o céu semicerrei os olhos, só vi a forca bruta do sol e o balão que subia cada vez mais alto, tornando-se mais pequeno até se perder na imensidão azul.
Senti os olhos humedecerem, mas nada disse. E tu olhaste-me. Na minha garganta formou-se um nó que parecia querer impedir-me de respirar. Abri os olhos o mais que pude, sentia-os a arder, inundados por uma água quente. Até que deles rolaram duas lágrimas que vieram parar-me na boca. Eram salgadas. Mesmo assim nada disseste. E eu continuei calada. Sentaste-te no banquinho de madeira que ainda hoje permanece no mesmo sítio, agarraste em mim e puxaste-me para o teu colo. Aconchegaste-me bem junto a ti e só aí, com a cabeça enterrada no teu pescoço, solucei. Tinha deixado fugir o balão que me tinhas dado....
E, nesse preciso momento, soube que tinha melhor colo do que algum dia seria capaz de sonhar.
14 de Maio de 2009

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